31 de jul. de 2010

Capítulo II

O carro do rapaz era espaçoso e confortável. Cheirava a couro. Um cheiro másculo que, combinado ao do homem sentado ao lado de Cassandra Cacilda, a deixava inebriada.  
Houve um momento de silêncio, em que o único barulho que se ouvia era o da chuva, agora mais forte, de encontro ao vidro das janelas.

Cassandra Cacilda tremia. Seria medo? Frio, talvez? Ou apenas aquele nervosismo do primeiro encontro? Nem ela sabia. Queria falar alguma coisa para quebrar o silêncio que, surpreendentemente, não era constrangedor. Mas ela queria saber mais sobre aquele rapaz. Preferiu permanecer quieta, deixando que ele iniciasse uma conversa:

- Percebi que você ficou incomodada com o que eu disse – ele disse olhando-a nos olhos. Mas você parecia uma idiota com aquela meleca roxa no queixo. Quero me desculpar.
- Tudo bem... – ela disse num sussurro.
- Meu nome é Clóvis. Clóvis Constantino. Qual seu nome?
- Cassandra Cacilda – ela agora falava com um tom de voz áspero, de desprezo.
- Tem certeza de que está tudo bem?
- Não, não está tudo bem! Você fica rindo de mim do bar, provavelmente fazendo piada com seus companheiros. Depois vem tirar com a minha cara, falando comigo como se eu fosse uma criança babona... Não venha com essa papo de “sou bonzinho, me abrace”, não cola!

Cassandra Cacilda saiu do carro, mesmo naquela chuva e, chorando, começou a correr. Sentia vergonha. Uma vergonha maior que aquela sentida no restaurante. O que ela estava pensando quando o abraçou no beco? Estava arrependida. Sentia-se uma meretriz entregando-se assim para qualquer um.

Ela só queria correr. E correr.

Sua roupa estava molhada e os cabelos castanhos escorridos pelo rosto. Então seu salto quebrou. E ela foi com a face de encontro ao chão. O chão molhado e sujo. A rua já parecia um pequeno córrego, levando muito lixo em sua correnteza. Cassandra Cacilda, num golpe de força, levantou-se. Estava suja. Tão suja, que a meleca roxa passaria despercebida. Ela tinha folhas em seu cabelo, e um folheto da campanha do Enéas estava colado em suas costas. Pobre Cassandra.

Cassandra Cacilda sentou-se na calçada para lamentar um pouco. Sua vida esta uma grande merda, e o que ela mais queria naquele momento era fugir. Então, uma luz adentrou a rua escura, iluminando Cassandra. Ela nem se importou, estava agora triste demais para sentir vergonha. Mas teve a boa-vontade de ver o que era. Seria Deus vindo buscá-la? Não, não era Deus. "Merda!", ela pensou. Era Clóvis Constantino.

- Cassandra Cacilda, por favor me perdoe! - ele gritava, tentando superar o barulho da chuva. Fui um tanto estúpido, mas meu coração é bom demais para deixar-te sem saber se me perdoas.

"Mas que porra é essa que ele está dizendo?", uma voz ecoava na cabeça de Cassandra Cacilda. Ela, sentada ali naquela calçada suja da rua escura, encarava o nada. E então começou a pensar nos seus objetivos, no rumo que sua vida tomara. Seu passado, o que viria a ser seu futuro. Por um momento, ficou preocupada. Depois, apenas pensou "Foda-se, a vida é minha".

Levantou-se, entrou no carro e, com um olhar malicioso, ordenou:
- Vá para a diversão.
- Como quiser - respondeu Clóvis Constantino, pisando no acelerador.

Clóvis Constantino, de repente, parou. Olhou para Cassandra Cacilda e, com um ar misterioso, dirigiu o olhar para o letreiro que dizia "Boite Cê Q Sab". Era ali, então, que morava a diversão. Entraram. O ambiente cheirava a cigarros e sexo. Cheiros muito conhecidos por Cassandra Cacilda... seu passado estava ali.

- Então, Cassandra. Você pediu, aqui está - Clóvis Constantino ria, esperando uma reação de Cassandra Cacilda.

Cassandra Cacilda rapidamente mudara de postura, ajeitando os cabelos e retirando o chiclete do sapato. Poderosa, voltara ao seu habtat natural.

Puxou Clóvis Constantino para dançar. Fazia uma dança sensual enquanto roubava o drinque dos outros que ali dançavam, jogando a bebida em seu corpo. Subia no balcão, chamava garotas para dançar. Então um ritmo conhecido invadiu seus ouvidos:



Foi possuída pelo ritmo latino da música e, perdendo seu último pingo de vergonha e dignidade, subiu no palco para sensualizar no poledance. Tudo sem perder de vista o homem que a acompanhava. Dava giros, saltos, estava arrasando, nasceu para aquilo.

- Clóvis Constantino? - um arrepio subiu-lhe a espinha. Para onde ele foi?

Cassandra Cacilda, num ataque de sanidade, percebeu onde estava. Em uma boate, dançando para outros homens e tocando em mulheres. Por que ela estava fazendo isso? Ficou pálida, atônita. "Que lugar é esse?". Procurava um rosto conhecido enquanto tentava afastar os pensamentos libidinosos que, não sabia como, estavam em sua cabeça. Ela não podia voltar ao passado.

Desceu do palco e foi atrás de Clóvis Constantino. Chamava-o sem resposta. Teria ele a deixado naquele lugar impuro? Não. Ele ainda estava lá. Cassandra Cacilda parou ao vê-lo conversando animadamente com um homem negro, careca e robusto, vestido do mais puro bom-gosto. Clóvis Constantino, ao ver Cassandra Cacilda, acenou para ela, encorajando-a a juntar-se aos dois. Um tanto amedrontada, Cassandra Cacilda aproximou-se.

- Clóvis Constantino, quero ir embora!
- Calma, Cassandra Cacilda, já vamos... Antes, quero lhe apresentar o meu novo amigo, o...
- Quero ir embora agora! - saiu, deixando os dois ali, embasbacados.

Clóvis Constantino foi atrás de Cassandra Cacilda, sem nem despedir-se do homem que acabara de conhecer.

- Entra no carro logo, Clóvis Constantino! - gritava feito uma louca.
- O que há de errado, Cassandra Cacilda?
- Tudo, tudo está errado! Como você pode ter me trazido à este antro de prostituição? O que você pensa que eu sou?
- Cassandra Cacilda, você que pediu para que eu lhe trouxesse aqui, como pode ter ficado assim?
- Cale a boca e me leve para casa! Não vou deixar que me trate como uma puta ordinária!

Clóvis tentou pedir que Cassandra explicasse o motivo de toda aquela ira, mas esta apenas ficava em silêncio.

Agora, lágrimas escorriam pela face de Cassandra Cacilda. Ela se deixara levar por desejos mundanos, desejos que ela jurou que nunca mais teria. Lembrou-se de suas promessas, de sua cura espiritual, de sua busca por um alguém que a tirasse daquela vida... Alguém especial.

Alguém como Clóvis Constantino. Ou não. Mas suas entranhas diziam que aquele era o homem da vida dela, mesmo conhecendo-o há pouco mais que cinco horas. Em sua mente, Clóvis Constantino já era seu. Já sentia ciúmes.

Ciúmes... E a figura do homem negro apareceu em sua cabeça. 

25 de jul. de 2010

Capítulo I – Quando fala o coração

Era uma noite de chuva e frio. Cassandra Cacilda e suas amigas estavam em casa, entediadas daquele sábado sem cor. Elas eram jovens, lindas e poderosas, tinham cabelos compridos e tinham feito depilação definitiva fazia poucos meses. Por quê, então, deveriam passar a noite de sábado em casa, comendo Doritos e assistindo o Roda a Roda?

- Amigas, nós temos todos os motivos do mundo para sairmos esta noite! – começou Cassandra Cacilda, irritada, cortando o silêncio da sala.
- Mas está chovendo, e está tão frio lá fora...
- Frio está seu coração. Há quanto tempo você não pega ninguém mesmo?

A amiga encarou raivosamente os olhos de Cassandra Cacilda. Mas permitiu-se permanecer calada. As outras, observando a cena, animaram-se em sair, mesmo com o frio que fazia lá fora.
Logo, estavam todas tirando o pijama e o creme de pepino do rosto. Em questão de minutos, estavam vestidas e cheirosas para matar.

- Temos licença para arrasar! – gritaram. Este era seu grito de guerra.

Decidiram fazer o “esquenta” em um restaurante orgânico, muito conhecido na cidade. Depois iriam para o BaladaEco, uma boate sustentável que usava a água da chuva para produzir o gelo que seria usado nos mictórios.
Sentaram-se e fizeram seus pedidos. Cassandra Cacilda optou pela Salada Cavalo: uma deliciosa salada de broto de alfafa e feijão, com macios e suculentos grãos de milho cozido.
Deliciaram-se com seus pratos orgânicos e pouco calóricos, dando risadas e contando fofocas entre uma garfada e outra. Satisfeitas, pediriam a sobremesa para logo seguirem para a boate. Cassandra Cacilda pediu a mousse de beterraba com granola. Seria preciso muita energia para agüentar a noitada que estava por vir.

Foi quando deu a primeira colherada na mousse que Cassandra Cacilda viu uma luz adentrando o recinto. Seguido por um cheiro inconfundível de perfume Avon masculino e gel Bozzano. A luz enfraqueceu seus olhos, mas logo ela pôde ver: um homem que ela definiria com apenas duas palavras: deus grego. Alto, branco (até demais), olhos de um castanho muito claro. Esse era o homem ideal.

Ele estava sozinho. Andou até o bar enquanto arrancava suspiros das mulheres que ali estavam. De alguns homens também. Sentou-se e pediu um drinque azul-espumante. Cassandra Cacilda não conhecia aquele drinque, mas achou toda a cena muito sensual. Aquele homem mexia com seus instintos mais selvagens.

O homem lançou um rápido olhar sobre ela que, encabulada, desviou, fingindo prestar atenção na mousse e na conversa das amigas. Fitava rapidamente o rapaz, observando-o com voluptosidade. E ele retribuía, deixando Cassandra Cacilda com a bochechas vermelhas.

- Vou ao banheiro, alguém me acompanha? – disse uma das amigas.

Todas levantaram-se, menos Cassandra Cacilda, distraída pela estonteante beleza do rapaz sentado ao bar.

- Você não vem, Cacildinha?
- N... não... Vou ficar bem aqui. – respondeu, desviando o olhar para as amigas.
- Então está bem, voltamos logo – uma delas respondeu.

Cassandra Cacilda voltou a admirar o rapaz. O rapaz lindo, perfeito, alto, másculo, cheirando à testosterona. Ela o queria.
Foi então que ele levantou-se e veio andando em sua direção. “Ele está vindo falar comigo?”, pensava ela. O cheiro que ele exalava fazia-a suspirar de prazer, fechando os olhos e esquecendo seus outros sentidos.

- Olá – interrompeu uma voz grossa.
Ela abriu os olhos. Era ele!
- Posso me sentar? – pediu educadamente.
- Claro! – respondeu, não conseguindo esconder o entusiasmo.
- Estava te olhando ali do bar, e... Bem, percebi que suas amigas te deixaram aqui sozinha...
- Sim, estou sozinha – ela falava baixo. Agora o cheiro dele estava muito mais forte.
- É, e queria te falar uma coisa, sabe? É que...
- O quê? – perguntava ela, aproximando-se dele.
- Tem uma coisa roxa no seu queixo. Bem estranha... Melhor limpar, hein? – e saiu da mesa acenando para ela.

Pronto, sua auto-estima caiu. Foi para o pré-sal. Ela já não queria mais sair. Limpou a sujeira de seu queixo e foi preparando-se para sair quando suas amigas voltaram do banheiro. Elas riam, estavam animadas com esta noite.

- Amigas, viram o gato que está no bar? – disseram duas das amigas, em coro.
A pergunta foi seguida por risinhos abafados e olhadelas em direção ao bar. Cassandra Cacilda apenas acenava com a cabeça, com um olhar triste.
- O que foi, Cassandra?
- Não estou muito bem. Acho que tinha algo de errado com a beterraba... Vocês ainda vão para a balada, sim? Eu vou para casa, preciso me deitar. Aproveitem! – pegou sua bolsa e saiu correndo.

Cassandra Cacilda começou a chorar assim que saiu do bar. Estava com seu orgulho ferido, e agora seu rímel estava borrado. Como iria superar aquilo? Estava chorando no beco ao lado do restaurante quando ouviu suas amigas saírem.

- Ela está muito estranha hoje. O que será que aconteceu? – perguntou uma às outras.
- Ela é estranha, vamos aceitar. Tem umas manias esquisitas e, o pior de tudo, acha que tem cabelo bom! – uma delas disse rindo.

As demais concordaram e seguiram até o carro, de onde iriam para a BaladaEco.

Cassandra Cacilda, ainda no beco, chorou mais ainda. Havia descoberto que suas amigas não eram amigas. Eram cobras. Eram falsas! Logo ela, que havia superado todo o seu passado de festas sexuais, regadas a bebidas e drogas. Ela achou que seria capaz de encontrar amigas de verdade. Mas estava enganada. E agora, sozinha no mundo.

Decidiu chamar um táxi. Pegou seu celular e começou a discar quando uma voz masculina, com timbre de autoridade, mas doce ao mesmo tempo, invadiu o beco:
- Você está bem? – a voz perguntava.
- Sim... eu acho – Cassandra respondia entre soluços.
- Saia daí, é perigoso. Venha para a luz, não vou te machucar.

Cassandra Cacilda, não se importando com a presença estranha que a chamava, foi em direção à voz. À medida que se aproximada, um cheiro conhecido invadia suas narinas. Era o rapaz do bar! O rapaz que, sem perceber, havia lhe dado um soco no estômago.

- Não chore, moça. – dizia ele abrindo os braços fortes para ela.

Cassandra Cacilda tentou falar alguma coisa. Agradecer, talvez. Mas só conseguia chorar. Atirou-se naqueles braços grandes, abraçando o tronco malhado do rapaz. Ela só precisava de um abraço. Alguém que lhe desse segurança, que a protegesse deste mundo cheio de pessoas infiéis, traidoras e manipuladoras. Um abraço para acalentar seu coração ferido.

Passaram um tempo abraçados na chuva. O frio não incomodava, seus corpos estavam quentes.

Então Cassandra Cacilda sentiu-se segura o suficiente para olhar nos olhos daquele homem que agora a abraçava como se fosse um velho amigo. Ficou admirando-o por alguns segundos, ensaiando, em sua mente, o que iria dizer para ele.

- Que... Quem é você? – gaguejando, foi tudo o que conseguiu pronunciar.
- Primeiro, vamos nos secar. Está muito frio aqui – ele respondeu com a voz firme, conduzindo-a até seu carro.

Estava entrando no carro de um estranho, mas não tinha medo. Ela se sentia segura. Algo dizia que, dali pra frente, as coisas seriam melhores.

Mas o quê a esperava? Isso, ela não sabia.